segunda-feira, 30 de agosto de 2010

El Otro Cielo de Julio Cortázar

Julio Cortázar, contemporâneo de Borges, mas oposto a ele, por ser de esquerda, criava obras extremamente carregadas de política. Romances e contos, todos apresentavam visões políticas. Não foi diferente com o conto O Outro Céu.

Seguiremos um novo modelo de analise. Não apresentando todas as personagens, o enredo, o tempo e os demais elementos. Mas sim, com uma visão conjunta de todos os fatores da narrativa.

Por principio, destacamos a ausência do nome. Isto é, a personagem protagonista em momento algum tem seu nome revelado (nem quando ocorrem os diálogos). Por que isso? Simples. O que é mais neutro do que uma personagem sem nome? Uma vida, claro que de papel, que não é a de ninguém. Uma personagem que é ao mesmo tempo complexa e estereotipada. Isto é, tem reflexões e mudanças de atitudes. Mas que ao final, remete, ao ver de alguns críticos, toda esta complexidade a uma simples espera. Uma espera pelo filho que nascerá em dezembro, pelas próximas eleições. Uma espera que fica evidenciada no ultimo período do conto:



E entre uma coisa e outra fico em casa tomando chimarrão, ouvindo Irma que está esperando para dezembro, e me pergunto sem muito entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em Tamborini, se votarei em branco ou simplesmente ficarei em casa tomando chimarrão e olhando para Irma e para as plantas do pátio.

Toda uma psicologia resumida a uma simples espera? Talvez seja a espera a culpada dos “vôos” psicológicos que a personagem faz. A espera por algo que não pode ser evitado.

No inicio do conto, também notamos uma premissa do conflito futuro: “há momentos em que torno a perguntar-me se já não seria época de voltar a meu bairro preferido, de esquecer-me dos meus afazeres (sou corretor de Bolsa) e, [...], encontrar Josiane [...]”. Um conflito entre: buscar Josiane ou manter seus afazeres.

O fato de tratar de Josiane nesse primeiro momento funciona como uma prolepse, isto é, uma antecipação de algo futuro dentro da obra. Já que não sabemos quem é Josiane. Se ela realmente é alguém.

Já que chegamos a Josiane vamos destacar uma passagem interessante sobre ela: “As Josiane daquela época [...]”. É interessante notar que Julio utiliza a expressão “As Josiane” porque ela não é uma mulher, mas a arquetipização de um conjunto de mulheres da época. Não todas, mas um grupo: as prostitutas. Dentro de todas as culturas, sempre existiram casos de prostituição, ora masculina ora feminina. De qualquer modo, seja qual for o caso, as prostitutas funcionam como uma forma de escape, uma forma de se libertar. Logo, não há personagem melhor para representar a liberdade que uma prostituta.

A personagem nos diz que seus lugares favoritos são os cafés, as galerias, as passagens. Lugares que formariam um “outro céu”, bem distinto do céu que via. Este mundo à parte, o mundo de Josiane, que a personagem tanto gostava, acabou se sendo “um céu mais próximo, de vidros sujos e gessos com figuras alegóricas que estendem as mãos para oferecer uma grinalda”.

Note: a própria personagem diz que a Galeria Vivienne, o “outro céu”, ficava bem próxima da rue Réaumur e da Bolsa. Ou seja, a personagem conflita entre manter-se preso aos tradicionalismos, remetendo-nos ao conservadorismo, ou perceber a existência de outro céu, remetendo à esquerda. Quanto a isso, podemos destacar o espaço. Ou seja, um conflito feito pelo espaço: de um lado a liberdade, do outro, as obrigações e os afazeres do “bom cidadão”.

Falemos agora de Irma, a noiva de nossa personagem. Irma era uma mulher tradicional, mantenedora dos costumes. Assim como, a mãe da personagem. Como a própria personagem sugere “[...] Irma, [...] se soubesse de minha predileção pelo Pasaje Güemes ficaria escandalizada”. Para efeito de compreensão, o Pasaje Güemes, o ambiente da prostituição, chamado, por ele, de o “outro céu”.

A mãe de nossa personagem era uma mulher que lutava para manter a família, que “por um ou dois dias me (a personagem) olha entre ofendida e hesitante”. Um sentimento que logo desaparece com um presente, que simboliza “de forma muito precisa e subentendida o fim da ofensa, o retorno à vida diária do filho que ainda mora em casa da mãe”. Uma contradição que nos remete a uma critica de Cortázar a instituição familiar: por um lado, a mãe que se ofende com o filho, que sai de casa e vai para um mundo livre. Um mundo de liberdade, ao ver do filho, e um, depravado, aos olhos da mãe. Por outro, a mesma mãe, sendo comprada por um simples presente (algumas vezes “com uma caixa de bombons ou uma planta para o pátio”).

Irma, segundo a personagem, é “a mais generosa das mulheres”. Por isso, a personagem, nunca teria coragem para dizer a ela o que realmente lhe importa. Conclui dizendo que: “[...] dessa maneira chegarei algum dia a ser um bom marido e um pai cujos filhos serão ao mesmo tempo os tão desejados netos de minha mãe.”
Note: em um primeiro momento ele fala sobre a visão do melhor programa familiar: “Para ela (Irma), como para minha mãe, não há melhor atividade social (grifo nosso) do que o sofá da sala, onde acontece isso que chama de conversa, o café e o anis”. Isso vem para contrastar com “outro céu”. E o que merece destaque nessa contraposição? O fim. Explicamos: no final do conto (trecho já transcrito) ele diz estar “[...] em casa tomando chimarrão, ouvindo Irma [...]”. A personagem se rende as arrematadoras instituições familiares. Ele busca tanto uma liberdade (que por lógica, associa-se à Josiane) e, ao final, não a alcança. É interessante destacar que: todo esse conflito remete-nos ao sucesso dos regimes autoritários na Argentina e no mundo.

Quanto a Josiane, a “liberdade” de nossa personagem, é uma – como se presume – prostituta. Uma mulher que tinha medo do assassino Laurent e, que ao mesmo tempo, vivia na noite. Nas ruas. Tinha um sentimento familiar, que nossa personagem define como muito vivo.

Note: existe um interessante ponto, onde a personagem trata da sua confiança em Josiane.



O sentimento familiar de Josiane era muito vivo, cheio de respeito às instituições e aos parentescos; sou um pouco dado às confidencias, mas como tínhamos que falar de alguma coisa e o que ela m contara sobre sua vida já fora comentado, tornávamos quase inevitavelmente a meus problemas de rapaz solteiro.

Outra personagem que merece destaque é o “alguém.” “Habituamo-nos a sair juntos quando ela tinha tempo, quando alguém – não gostava de chamá-lo pelo nome (grifo nosso) – estava suficientemente satisfeito para deixá-la divertir-se com os amigos.” É interessante destacar que: de uma visão política, chamar alguém de “alguém” é uma atitude muito sabia.

Note: ao associarmos Josiane à liberdade, teremos que este “alguém” é uma marca do autoritarismo que o mundo, e a Argentina, viviam. Isto porque o livro Todos los fuegos el fuego foi publicado em 1966. Pensemos: o que acontecia no mundo nos anos de 66? Na Europa, tínhamos o fim da 2ª Guerra e o inicio da Guerra Fria. Na Argentina, o primeiro governo de Perón (1946-1955) chegava ao fim. Temos, no final do conto, provas de que o conto trata deste período político-social que o mundo passava: “A bomba caiu sobre Hiroshima [...] cada dia, acontecia uma nova derrota nazista e novos ódios, inútil reação a ditadura [...]” Portanto, temos, nestas conclusões, a prova da associação do enredo aos acontecimentos políticos da época, tanto no mundo como, principalmente, na Argentina.

Tratemos agora de nosso narrador, que já no principio do conto fica evidente sua forma: “Acontecia-me (grifo nosso) às vezes...”. É interessante notar a presença do pronome me, que dentre outras coisas, indica a presença da primeira pessoa. Ou seja, temos um narrador autodiegético. Isso indica que o foco narrativo será limitado, já que o narrador conta sua própria historia. Logo, teremos uma visão parcial de toda a história. Não saberemos o que as demais personagens, como Irma, a Mãe ou Josiane, pensam. Em contrapartida, teremos uma visão quase que completa da personagem, isto é, do narrador.

Note: o fato de uma obra ser narrada por seu protagonista não faz dela, ruim. Apenas faz com que a visão se delimite ao que é verdade, dentro dos olhos da personagem. Talvez a grandiosidade do narrador de Cortázar tenha sido essa: contar sua própria história. Assim ele pode se valer dos efeitos necessários para suas criticas políticas e sociais.

Quanto ao espaço e ao tempo, por termos um narrador autodiegético, existe a presença do espaço e tempo psicológicos. Isto é, um espaço que está interiorizado na personagem, assim como o tempo.

O espaço físico, o local onde se desenvolve a obra é Paris: “[...] com medo do estrangulador que rondava por Paris (grifo nosso) [...]” É interessante notar que as personagens, todas, vivem pelas ruas e becos de Paris. Dentro da analise que tomamos, devemos nos questionar: será realmente em Paris que se passa essa história? Será mesmo Laurent um estrangulador? Dentro do contexto político que adotamos para analise, Laurent representaria José Tamborini, candidato da oposição, disputou as eleições com Perón. Perón seria representado dentro da obra pelo “alguém”, que usava de Josiane (a liberdade) e, depois, deixava-a sobre a guarda de nossa personagem, com medo que Laurent (Tamborini) fizesse algo a ela. Surge então uma questão: se a obra de Cortázar trazia está critica, tão explicita quanto o próprio Perón, por que não foi censurada? Para explicar, vejamos: um dos inconfidentes mineiros, Tomás Antônio Gonzaga, escreve “Cartas Chilenas”. Uma obra satírica, que pelo título, remete-nos ao Chile. Contudo, esta foi uma das mais geniais artimanhas literárias: usar o título para remeter ao Chile, enquanto a obra por si trata do Brasil. E quanto à obra de Cortázar? Simples: “[...] com medo do estrangulador que rondava por Paris (grifo nosso) [...]”, fazendo a obra se passar em Paris, Cortázar consegue a imunidade da mesma. Logo, podemos dizer que o espaço psicológico da obra é a Argentina, onde toda a crítica política poderia ser notada.

Note: o contraste entre os espaços, que ora remetem à liberdade (espaço aberto), ora, a angustia (espaço fechado). É, também, interessante destacar que o espaço aberto dentro da obra é o “outro céu”. As ruas da prostituição – onde devemos relembrar a já explicada função da personagem ser uma prostituta – seriam o ambiente do “outro céu”, um ambiente aberto. Já a Bolsa, a casa da personagem, remete-nos a um ambiente fechado.

Coincidentemente, o tempo cronológico e o psicológico coincidem. Isto é, durante toda a obra, como já dito anteriormente, existe uma espera. Uma espera pelas eleições, que é resumida, com maestria pela personagem, em um questionamento quase que memorável: “e me pergunto sem muito entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em Tamborini, se votarei em branco ou simplesmente ficarei em casa tomando chimarrão e olhando para Irma e para as plantas do pátio.” Ou seja, toda a obra – se vista por esse ângulo – transcorre na Argentina pré-Perón (seu segundo governo, que será de 1973 à 1974).

Ainda sobre “Laurent”, podemos lembrar que Perón punia radicalmente todos que fossem contra seu governo. Depois de alguns “crimes”, Laurent foi enforcado. Outra prova da alusão da obra à Argentina. Com a morte de Laurent tudo voltaria ao normal. Será? Nossa personagem não tinha mais motivos para conviver com a liberdade, ou melhor, Josiane. “Alguém” já não tinha mais de se preocupar em ter alguém para protegê-la, já que não havia mais perigo. E restava, para nossa personagem, apenas uma coisa: “e me pergunto sem muito entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em Tamborini, se votarei em branco ou simplesmente ficarei em casa tomando chimarrão e olhando para Irma e para as plantas do pátio.” Depois de tudo era apenas isso: votar em Perón ou em Tamborini, ou ainda em branco. E, talvez, em última instância ficar em casa, com Irma.

Por fim, chegamos ao ápice da nostalgia de nossa personagem: sua insignificância. Depois de todas as peripécias que viveu, a liberdade que tinha na zona de prostituição, a falsidade de sua vida social; a personagem apenas conclui que sua vida é insignificante, diante dos acontecimentos políticos que o mundo vivia.

Um comentário:

  1. Há, distintamente, duas passagem no conto que mostram um delírio do narrador de O Outro Céu.
    O conto mostra claramente um desejo de evasão do narrador e para isso lançava mão de um método que o levará à transpor as barreiras da realidade imediata , sempre precedido de quase imóvel concentração, já escolhe obstinadamente o local onde parar e, na observação muda da realidade à volta, o movimento do trânsito, das pessoas, consegue, numa espécie de transe, sobrepujar, pela imaginação, a realidade na qual se insere.

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