segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dos Anos de Ferro aos Anos da Educação

Análise educacional da Lei 1802/53 e dos Atos Institucionais (AI) I ao V.
Veremos as influências e posicionamentos do governo militar quanto à educação. Além de observarmos as influências que tais posturas políticas tiveram dentro do ambiente escolar na época, veremos, também, suas conseqüências imediatas e não imediatas.

Em 05 de janeiro de 1953, nascia a Lei 1802. Extremamente pró-ditadura, foi uma forma pré-golpe de controle político. Depois da 2ª Guerra Mundial, o capitalismo, grande vencedor, passou a incitar o mundo, e o Brasil, contra um novo inimigo: o comunismo. Dentro desta visão, precisamos notar a crise política e social que o Brasil enfrentava: conseqüências da Era Vargas, presidentes com interesses diferentes da nova força política, uma sociedade em crise, condições perfeitas para o surgimento do autoritarismo.
Com a Lei 1802/53, em especial, os artigos 9º e 12º, tivemos uma demonstração do que estaria por vir. Sobre os artigos: este era um mecanismo vinculado a constituição para impedir a incitação e o ânimo para a luta das classes, sob pena de prisão de seis meses a dois anos. Já aquele, era mais “partidário”, pois se vinculava a organização ou reorganização de partidos políticos excluídos pelo regime das “disposições legais.”

O artigo 9º direcionava-se mais aos partidos. Já o artigo 12º, poderia ser mais educacional. Isto é, seria a verdadeira influência dentro da classe estudantil. Com esse dispositivo, seria impossível, para os professores universitários e secundários, colocarem em “xeque” as condições do Brasil da época. Podemos, então, afirmar que o fato de um artigo que proíba a incitação da “luta pelas classes”, seria mais um dispositivo alienador da classe estudantil.

Porém, cabe uma interferência: dentro do meio acadêmico existia, existe e sempre vai existir, uma tentativa de convencimento político, ou seja, uma tentativa de “seduzir” o jovem estudante para um posicionamento político, diferente do atual. Por assim dizer, o 12º artigo seria mais uma forma de censura, proibindo a exposição das reais condições do Brasil, fazendo com que o jovem, alienado, não questionasse as atitudes e posicionamentos tomados pelo governo.

O principal reflexo desse dispositivo é a atual alienação de uma grande parcela da população, que, tendo estudado naquele período, sofreu com o artigo. E ainda mais: outra grande parcela dos estudantes, hoje, sofre com esse artigo, já que os atuais docentes, eram discentes na época.

Depois de uma “inquestionável” posse do Governo, pelos militares, nasceram os Atos Institucionais, mecanismos justificadores das atitudes tomadas pelo então governo. Foram decretados dezessete atos, e 104 atos complementares, durante o período de governo militar. Sendo os mais conhecidos e estudados o I, II, III, IV e V.

De modo geral, o AI I, dava ao governo militar

“...o poder de alterar a constituição, cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos por dez anos e demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública.”

Com isso, o governo militar teria uma potente arma contra os funcionários públicos. E, automaticamente, contra os professores de Universidades públicas. Já que, podendo disponibilizar ou aposentar compulsoriamente, poderiam afastar das Universidades qualquer pessoa, sendo ela docente ou não, que ameaçasse a permanência dos militares no poder.

Quanto aos demais AI’s é interessante destacar o reforço dado por todos ao AI I, quando se trata da demissão compulsória de funcionarios públicos, afetando diretamente a vida acadêmica dos docentes.

Contudo, dentro dos cinco AI’s que tratamos, o grande merecedor de destaque é o AI V, onde o Presidente da República, provido do Art. 2º decretou a Lei 477/69. É interessante notar que esta Lei funcionou como um grande “cale boca” dentro da educação brasileira da época.



“Art. 1o Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular (grifo nosso) que:

I - Alicie ou incite a deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralização de atividade escolar ou participe nesse movimento;

II - Atente contra pessoas ou bens, tanto em prédio ou instalações, de qualquer natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dele;

III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dele participe;

IV - Conduza ou realiza, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza;

V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro do corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente de autoridade ou aluno;

VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública.”

A Lei não tem nada que mereça um destaque, como uma nova forma de proibições ou punições. Contudo, a Lei é extremamente educacional já que trata das punições para “o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular.”

Mais interessante que esta Lei, é o pronunciamento do Ministro da Educacao, ao declarar que “estudantes tem que estudar” e “não podem fazer baderna.” Questionemo-nos agora: então até que ponto a formação social de um estudante universitário é “baderna”? E quanto aos alunos de licenciaturas? Seria justo retirar de sua formação a parte política, como há na UNESP?

Outro grande ponto do Regime Militar é a Constituição de 1967, onde, dentro de todos os seus dispositivos, temos a presença da censura. Uma forma de barrar o avanço da Arte e das Comunicações, fortes armas dentro da Educação. Durou até o governo de José Sarney. Um período negro, que legalmente, durou dezesseis anos. Tempo mais do que necessário para causar um grave vácuo na cultura nacional.



Destacamos ainda, no período mais “negro” do regime militar, a Lei 5.692, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1971. De modo mais amplo, a LDB vinha para ampliar a produtividade do brasileiro. Uma forma de reforçar os slogans da época, tais como: “Brasil: ame-o ou deixe-o.”



Além de outros como a idéia do “milagre econômico” e do “Brasil Grande.”



É interessante, e seria até mesmo hilariante, caso não fosse terrível, que o período anterior ao Golpe foi um dos períodos em que a educação no Brasil mais avançou: “Neste período atuaram educadores do porte de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Carneiro Leão, Armando Hildebrand, Pachoal Leme, Paulo Freire, Lauro de Oliveira Lima, Durmeval Trigueiro, entre outros.”

Chegamos então ao fim da ditadura. O Regime termina. Mas sua ideologia conservadora e censurativa continuam dentro de nosso imaginário. Ainda ouvimos o velho discurso de que na época dos militares todos, seguindo é claro a censura, a imposição de seus ideais e, ainda mais, a falta de liberdade educacional, tinham empregos. Que o milagre econômico foi o grande auge do Brasil.

Considerando que estas pessoas estejam certas, o que dizer dos milhares de alunos, professores e funcionários públicos que foram perseguidos e condenados por pensarem? O que dizer às famílias que não sabem nem ao menos o que houve com seus entes?

Assim sendo, dizer que o Regime foi bom, é o mesmo que dizer que se Hitler tivesse matado os judeus, não teríamos, hoje, problemas no Oriente Médio.

El Otro Cielo de Julio Cortázar

Julio Cortázar, contemporâneo de Borges, mas oposto a ele, por ser de esquerda, criava obras extremamente carregadas de política. Romances e contos, todos apresentavam visões políticas. Não foi diferente com o conto O Outro Céu.

Seguiremos um novo modelo de analise. Não apresentando todas as personagens, o enredo, o tempo e os demais elementos. Mas sim, com uma visão conjunta de todos os fatores da narrativa.

Por principio, destacamos a ausência do nome. Isto é, a personagem protagonista em momento algum tem seu nome revelado (nem quando ocorrem os diálogos). Por que isso? Simples. O que é mais neutro do que uma personagem sem nome? Uma vida, claro que de papel, que não é a de ninguém. Uma personagem que é ao mesmo tempo complexa e estereotipada. Isto é, tem reflexões e mudanças de atitudes. Mas que ao final, remete, ao ver de alguns críticos, toda esta complexidade a uma simples espera. Uma espera pelo filho que nascerá em dezembro, pelas próximas eleições. Uma espera que fica evidenciada no ultimo período do conto:



E entre uma coisa e outra fico em casa tomando chimarrão, ouvindo Irma que está esperando para dezembro, e me pergunto sem muito entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em Tamborini, se votarei em branco ou simplesmente ficarei em casa tomando chimarrão e olhando para Irma e para as plantas do pátio.

Toda uma psicologia resumida a uma simples espera? Talvez seja a espera a culpada dos “vôos” psicológicos que a personagem faz. A espera por algo que não pode ser evitado.

No inicio do conto, também notamos uma premissa do conflito futuro: “há momentos em que torno a perguntar-me se já não seria época de voltar a meu bairro preferido, de esquecer-me dos meus afazeres (sou corretor de Bolsa) e, [...], encontrar Josiane [...]”. Um conflito entre: buscar Josiane ou manter seus afazeres.

O fato de tratar de Josiane nesse primeiro momento funciona como uma prolepse, isto é, uma antecipação de algo futuro dentro da obra. Já que não sabemos quem é Josiane. Se ela realmente é alguém.

Já que chegamos a Josiane vamos destacar uma passagem interessante sobre ela: “As Josiane daquela época [...]”. É interessante notar que Julio utiliza a expressão “As Josiane” porque ela não é uma mulher, mas a arquetipização de um conjunto de mulheres da época. Não todas, mas um grupo: as prostitutas. Dentro de todas as culturas, sempre existiram casos de prostituição, ora masculina ora feminina. De qualquer modo, seja qual for o caso, as prostitutas funcionam como uma forma de escape, uma forma de se libertar. Logo, não há personagem melhor para representar a liberdade que uma prostituta.

A personagem nos diz que seus lugares favoritos são os cafés, as galerias, as passagens. Lugares que formariam um “outro céu”, bem distinto do céu que via. Este mundo à parte, o mundo de Josiane, que a personagem tanto gostava, acabou se sendo “um céu mais próximo, de vidros sujos e gessos com figuras alegóricas que estendem as mãos para oferecer uma grinalda”.

Note: a própria personagem diz que a Galeria Vivienne, o “outro céu”, ficava bem próxima da rue Réaumur e da Bolsa. Ou seja, a personagem conflita entre manter-se preso aos tradicionalismos, remetendo-nos ao conservadorismo, ou perceber a existência de outro céu, remetendo à esquerda. Quanto a isso, podemos destacar o espaço. Ou seja, um conflito feito pelo espaço: de um lado a liberdade, do outro, as obrigações e os afazeres do “bom cidadão”.

Falemos agora de Irma, a noiva de nossa personagem. Irma era uma mulher tradicional, mantenedora dos costumes. Assim como, a mãe da personagem. Como a própria personagem sugere “[...] Irma, [...] se soubesse de minha predileção pelo Pasaje Güemes ficaria escandalizada”. Para efeito de compreensão, o Pasaje Güemes, o ambiente da prostituição, chamado, por ele, de o “outro céu”.

A mãe de nossa personagem era uma mulher que lutava para manter a família, que “por um ou dois dias me (a personagem) olha entre ofendida e hesitante”. Um sentimento que logo desaparece com um presente, que simboliza “de forma muito precisa e subentendida o fim da ofensa, o retorno à vida diária do filho que ainda mora em casa da mãe”. Uma contradição que nos remete a uma critica de Cortázar a instituição familiar: por um lado, a mãe que se ofende com o filho, que sai de casa e vai para um mundo livre. Um mundo de liberdade, ao ver do filho, e um, depravado, aos olhos da mãe. Por outro, a mesma mãe, sendo comprada por um simples presente (algumas vezes “com uma caixa de bombons ou uma planta para o pátio”).

Irma, segundo a personagem, é “a mais generosa das mulheres”. Por isso, a personagem, nunca teria coragem para dizer a ela o que realmente lhe importa. Conclui dizendo que: “[...] dessa maneira chegarei algum dia a ser um bom marido e um pai cujos filhos serão ao mesmo tempo os tão desejados netos de minha mãe.”
Note: em um primeiro momento ele fala sobre a visão do melhor programa familiar: “Para ela (Irma), como para minha mãe, não há melhor atividade social (grifo nosso) do que o sofá da sala, onde acontece isso que chama de conversa, o café e o anis”. Isso vem para contrastar com “outro céu”. E o que merece destaque nessa contraposição? O fim. Explicamos: no final do conto (trecho já transcrito) ele diz estar “[...] em casa tomando chimarrão, ouvindo Irma [...]”. A personagem se rende as arrematadoras instituições familiares. Ele busca tanto uma liberdade (que por lógica, associa-se à Josiane) e, ao final, não a alcança. É interessante destacar que: todo esse conflito remete-nos ao sucesso dos regimes autoritários na Argentina e no mundo.

Quanto a Josiane, a “liberdade” de nossa personagem, é uma – como se presume – prostituta. Uma mulher que tinha medo do assassino Laurent e, que ao mesmo tempo, vivia na noite. Nas ruas. Tinha um sentimento familiar, que nossa personagem define como muito vivo.

Note: existe um interessante ponto, onde a personagem trata da sua confiança em Josiane.



O sentimento familiar de Josiane era muito vivo, cheio de respeito às instituições e aos parentescos; sou um pouco dado às confidencias, mas como tínhamos que falar de alguma coisa e o que ela m contara sobre sua vida já fora comentado, tornávamos quase inevitavelmente a meus problemas de rapaz solteiro.

Outra personagem que merece destaque é o “alguém.” “Habituamo-nos a sair juntos quando ela tinha tempo, quando alguém – não gostava de chamá-lo pelo nome (grifo nosso) – estava suficientemente satisfeito para deixá-la divertir-se com os amigos.” É interessante destacar que: de uma visão política, chamar alguém de “alguém” é uma atitude muito sabia.

Note: ao associarmos Josiane à liberdade, teremos que este “alguém” é uma marca do autoritarismo que o mundo, e a Argentina, viviam. Isto porque o livro Todos los fuegos el fuego foi publicado em 1966. Pensemos: o que acontecia no mundo nos anos de 66? Na Europa, tínhamos o fim da 2ª Guerra e o inicio da Guerra Fria. Na Argentina, o primeiro governo de Perón (1946-1955) chegava ao fim. Temos, no final do conto, provas de que o conto trata deste período político-social que o mundo passava: “A bomba caiu sobre Hiroshima [...] cada dia, acontecia uma nova derrota nazista e novos ódios, inútil reação a ditadura [...]” Portanto, temos, nestas conclusões, a prova da associação do enredo aos acontecimentos políticos da época, tanto no mundo como, principalmente, na Argentina.

Tratemos agora de nosso narrador, que já no principio do conto fica evidente sua forma: “Acontecia-me (grifo nosso) às vezes...”. É interessante notar a presença do pronome me, que dentre outras coisas, indica a presença da primeira pessoa. Ou seja, temos um narrador autodiegético. Isso indica que o foco narrativo será limitado, já que o narrador conta sua própria historia. Logo, teremos uma visão parcial de toda a história. Não saberemos o que as demais personagens, como Irma, a Mãe ou Josiane, pensam. Em contrapartida, teremos uma visão quase que completa da personagem, isto é, do narrador.

Note: o fato de uma obra ser narrada por seu protagonista não faz dela, ruim. Apenas faz com que a visão se delimite ao que é verdade, dentro dos olhos da personagem. Talvez a grandiosidade do narrador de Cortázar tenha sido essa: contar sua própria história. Assim ele pode se valer dos efeitos necessários para suas criticas políticas e sociais.

Quanto ao espaço e ao tempo, por termos um narrador autodiegético, existe a presença do espaço e tempo psicológicos. Isto é, um espaço que está interiorizado na personagem, assim como o tempo.

O espaço físico, o local onde se desenvolve a obra é Paris: “[...] com medo do estrangulador que rondava por Paris (grifo nosso) [...]” É interessante notar que as personagens, todas, vivem pelas ruas e becos de Paris. Dentro da analise que tomamos, devemos nos questionar: será realmente em Paris que se passa essa história? Será mesmo Laurent um estrangulador? Dentro do contexto político que adotamos para analise, Laurent representaria José Tamborini, candidato da oposição, disputou as eleições com Perón. Perón seria representado dentro da obra pelo “alguém”, que usava de Josiane (a liberdade) e, depois, deixava-a sobre a guarda de nossa personagem, com medo que Laurent (Tamborini) fizesse algo a ela. Surge então uma questão: se a obra de Cortázar trazia está critica, tão explicita quanto o próprio Perón, por que não foi censurada? Para explicar, vejamos: um dos inconfidentes mineiros, Tomás Antônio Gonzaga, escreve “Cartas Chilenas”. Uma obra satírica, que pelo título, remete-nos ao Chile. Contudo, esta foi uma das mais geniais artimanhas literárias: usar o título para remeter ao Chile, enquanto a obra por si trata do Brasil. E quanto à obra de Cortázar? Simples: “[...] com medo do estrangulador que rondava por Paris (grifo nosso) [...]”, fazendo a obra se passar em Paris, Cortázar consegue a imunidade da mesma. Logo, podemos dizer que o espaço psicológico da obra é a Argentina, onde toda a crítica política poderia ser notada.

Note: o contraste entre os espaços, que ora remetem à liberdade (espaço aberto), ora, a angustia (espaço fechado). É, também, interessante destacar que o espaço aberto dentro da obra é o “outro céu”. As ruas da prostituição – onde devemos relembrar a já explicada função da personagem ser uma prostituta – seriam o ambiente do “outro céu”, um ambiente aberto. Já a Bolsa, a casa da personagem, remete-nos a um ambiente fechado.

Coincidentemente, o tempo cronológico e o psicológico coincidem. Isto é, durante toda a obra, como já dito anteriormente, existe uma espera. Uma espera pelas eleições, que é resumida, com maestria pela personagem, em um questionamento quase que memorável: “e me pergunto sem muito entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em Tamborini, se votarei em branco ou simplesmente ficarei em casa tomando chimarrão e olhando para Irma e para as plantas do pátio.” Ou seja, toda a obra – se vista por esse ângulo – transcorre na Argentina pré-Perón (seu segundo governo, que será de 1973 à 1974).

Ainda sobre “Laurent”, podemos lembrar que Perón punia radicalmente todos que fossem contra seu governo. Depois de alguns “crimes”, Laurent foi enforcado. Outra prova da alusão da obra à Argentina. Com a morte de Laurent tudo voltaria ao normal. Será? Nossa personagem não tinha mais motivos para conviver com a liberdade, ou melhor, Josiane. “Alguém” já não tinha mais de se preocupar em ter alguém para protegê-la, já que não havia mais perigo. E restava, para nossa personagem, apenas uma coisa: “e me pergunto sem muito entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em Tamborini, se votarei em branco ou simplesmente ficarei em casa tomando chimarrão e olhando para Irma e para as plantas do pátio.” Depois de tudo era apenas isso: votar em Perón ou em Tamborini, ou ainda em branco. E, talvez, em última instância ficar em casa, com Irma.

Por fim, chegamos ao ápice da nostalgia de nossa personagem: sua insignificância. Depois de todas as peripécias que viveu, a liberdade que tinha na zona de prostituição, a falsidade de sua vida social; a personagem apenas conclui que sua vida é insignificante, diante dos acontecimentos políticos que o mundo vivia.

La izquierda Cortázar

“Na literatura, não há bons ou maus temas:
somente há um bom ou mal tratamento do tema.”
– Julio Cortázar

Cortázar, um dos mais célebres escritores da América - Latina, conviveu, mesmo que a distância, com os períodos autoritários no mundo, em especial, na Argentina. Diferente do que prevêem alguns críticos – raquíticos e ignorantes – a literatura sofre sim uma grande influência do contexto histórico em que ela é produzida. Em seu livro de contos Todos los fuegos el fuego, Cortázar escreve um dos mais magistrais contos fantásticos, “El otro cielo”. A obra trata de uma personagem, cujo nome fica-nos desconhecido durante todo o conto, que passa a freqüentar a zona de prostituição de Paris, mesmo estando em Buenos Aires.

Uma personagem que conflita entre manter seus afazeres familiares e profissionais: o casamento com Irma, o trabalho na Bolsa, um mãe que se choca com os reais desejos e atitudes do filho e que ao mesmo tempo se vende por presentes. E seus reais desejos: ficar com Josiane, caminhar pelas ruas, becos e cafés da zona de prostituição de Paris. Tudo funcionando com uma espécie de espera, algo que nunca vem. E que ao final, resume-se – e não por isso “ruim” – em uma espera pelo filho, que nascerá em dezembro, pelas próximas eleições e a duvida em quem votar: Perón, Tamborini ou em branco. Ou ainda, quem sabe, ficar em casa, olhando para Irma e para as plantas no pátio, que com certeza a maioria se originou do quase suborno pago à mãe.

Perguntas rondam, agora, nossa mente: se a obra trata de uma personagem que transita entra as obrigações e a desobrigação, qual a relação política e social sobre o tema? Os críticos, que assim pensa, logo mudam de opinião quando percebem que Cortázar é um escrito fantástico e simbólico, que destes, tem apenas o título.

Durante o final da 2ª Guerra Mundial e o fim das grandes ditaduras na América – Latina, surgiu uma forma de critica muito apreciada pelos escritores norte-americanos. Era uma fantasia tão real quanto o próprio Realismo: fantasiava-se a realidade, como uma forma de distração a censura, tornando a obra extremamente politizada. Cortázar é um dos maiores exemplares desta nova forma literária, apesar de auto-exilado em Paris (daí transferir a ambientação de suas obras para Paris) e recebendo muitas criticas, já que “abandonou” a Argentina – na época do governo de Perón.

Nas décadas de 1960 a Argentina vivia um constante medo: que Perón voltasse ao poder. Contudo, o medo, logo deu lugar ao desejo. E em 1973, é reeleito. Cortázar critica o período do primeiro governo de Perón (1946-1955), já que o livro Todos los fuegos el fuego teve sua primeira edição em 1966 (CORTÁZAR, Julio. Todos los fuegos el fuego. Buenos Aires: Sudamericana, 1966). Cortázar, que nasceu em Bruxelas, era filho de pais argentinos, logo, um Argentino fervoroso e defensor de seu país.

A grandiosidade de suas obras faz de Cortázar um dos ícones da literatura fantástica, já que as mesmas têm as características propostas por Vladimir Propp. E ao mesmo tempo, é um dos ícones da literatura politizada, por que por mais simbólica ou fantástica que suas obras possam parecer, elas são na verdade grandes críticas políticas e sociais.

Apesar de todas as críticas que sofreu por ter se auto-exilado e vivido o regime peronista em Paris, Cortázar alcançou o que desejava: criticar a sociedade de direita, conservadora. Mostrar, de certo modo, a sociedade esquerdista (já que todo o discurso ideológico carrega dois ideais: o que critica no caso o regime peronista, de supressão da liberdade. E o que defende, implicitamente, a sociedade esquerdista, socialista).